Luiz Paulo Faccioli

A hora e a vez da banalidade - Livia Garcia Roza

Luiz Paulo Faccioli


O bom contador de histórias é um tipo de virtuose cada vez menos freqüente na literatura brasileira. Existem, sem dúvida, outras qualidades autorais tanto ou talvez até mais relevantes que essa, por vezes considerada inata. O apuro da linguagem, a inventividade das tramas, a argúcia para identificar e tratar de conflitos delicados são exemplos daquilo que o leitor gosta de reconhecer nos seus autores favoritos. É certo, também, que a literatura nunca dispensa atributos dessa ordem; dependentes do estilo de cada autor — e das características individuais de cada obra —, eles podem aparecer em variadas graduações, mas sempre se farão notar no texto literário. A escassez da qual se fala aqui refere-se àquele talento que só uns poucos têm para roubar uma história da banalidade e narrá-la com graça capaz de cativar o mais exigente dos leitores. Esses artistas costumam ter em comum outras duas vocações: a de criar tipos inesquecíveis e a de exercitar o humor. E não se trata de um equívoco pensar que essas duas últimas são na realidade os alicerces da primeira: o personagem construído com sutileza necessária para que suas idiossincrasias fiquem à mostra e suscetíveis a um olhar sarcástico é meio caminho andado para que as histórias protagonizadas por ele se tornem naturalmente cativantes.
Livia Garcia-Roza é uma dessas raras aves.

Psicanalista carioca nascida no Flamengo, pós-graduada em Psicologia Clínica, Livia estreou na ficção em 1995 com Quarto de Menina, de pronto merecedor do selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Desde então, vem ascendendo a passos largos numa carreira que inclui já seis narrativas longas, duas delas finalistas do Prêmio Jabuti, e um livro de contos que está sendo lançado neste mês, a menos de meio ano de A palavra que veio do Sul, seu mais recente romance.

Como boa contadora de histórias que é, Livia Garcia-Roza se esmera no retrato de cada um dos personagem; todos eles, por menor que seja sua estatura na trama, ganham algumas pinceladas marcantes, luzidias, que os fazem vivos. E absolutamente singulares. Confirmando o que já era previsto, um humor sutil, leve, muito bem dosado vem a serviço da composição desses tipos.

Dentre suas muitas peculiaridades, a autora tem uma especial afeição pela primeira pessoa, narrador invariável de todos os seis romances, e também por sempre explorar os conflitos familiares clássicos, com ênfase na relação mãe-filha, uma das mais complexas na vida real e, por conseguinte, riquíssima em possibilidades literárias. Aliás, é fato curioso que todos os romances abram sempre com uma cena protagonizada pela mãe de quem está narrando.

Fiel a essa linhagem, o novo romance começa justamente com a palavra “mamãe” e conta a história de Helena Maria, a Leninha, nos anos que delimitam sua passagem da infância à adolescência, incluída aí a óbvia descoberta do sexo. Os pais, separados, andam às turras pela guarda da menina. A mãe tem o mesmo nome da filha e vive de elaborar e interpretar mapas astrais. Casado pela segunda vez, o pai advogado, Edilberto, não faz agora outra coisa além de administrar o rico patrimônio de Miriam, conquista de casamentos anteriores e muito lucrativos. Filha única, Leninha é obrigada a morar entre as duas casas. Em torno da divertida astróloga, forma-se o núcleo menos favorecido: seu Wanderley, especialista em redigir obituários e cliente assíduo; Marisa, estudante de medicina homossexual e apaixonada por Helena; Rosa Fernanda, a empregada alcoólatra. Na casa do pai, em meio ao luxo e à futilidade da vida que levam ali, Miriam reina soberana e caricatural como a nouvelle riche mimada pelo marido. Um terceiro cenário é a fazenda de um casal amigo, aonde Edilberto e Miriam costumam ir nos fins de semana para jogar cartas. Levada por eles, a contragosto nas primeiras vezes, Leninha acaba por se envolver com Jonathan, o filho do caseiro. Matilde, um espalhafatoso manequim transformado em brinquedo e tratado por Leninha como se fosse um ser humano, ganha status de personagem pela importância e regularidade com que participa da história. O mesmo acontece com Infeliz, o cachorro velho e desengonçado de Miriam que traz no próprio nome seu adjetivo mais que perfeito.

A palavra que veio do Sul refere-se à correspondência eletrônica mantida pela astróloga com um gaúcho arredio conhecido na internet e que ela quer porque quer alçar à condição de namorado virtual. Helena vive à espera desse e-mail, que chega com uma freqüência muito inferior à desejada por ela.

Obviamente, o enredo mais uma vez serve apenas de pretexto para que Livia exercite o que sabe fazer de melhor. De novo, a galeria bem fornida de personagens curiosos, todos eles, sem exceção, dotados de traços delicadamente caricatos, o que provoca no leitor uma empatia instantânea. De novo, o humor refinado e perspicaz, costura fundamental de todos os detalhes. Mas não se espere, a partir dessas afirmações, encontrar em A palavra... apenas a repetição preguiçosa de uma fórmula que já deu certo. O bom contador de histórias está sempre à cata de novidades, e algumas características do novo romance são exclusivas em relação aos anteriores.

O zodíaco ilustrando a elegante capa criada por Victor Burton antecipa qual assunto será destaque. A abordagem da astrologia parece pertinente (como o resenhista não tem competência para avaliar tecnicamente este aspecto, vale-se aqui da opinião da escritora Lilian Fontes em matéria publicada no Jornal do Brasil: “sem cometer nenhuma gafe em relação a este conhecimento — fruto de boa pesquisa —, a autora consegue introduzir o tema na ficção, recurso utilizado hoje em dia para se ter uma maior compreensão do universo que nos cerca, embora em alguns momentos soe um tanto irônico”, com uma ligeira e devida ressalva: na verdade, a ironia é deliberada e condizente com o caráter da narrativa, além de mostrar um caminho mais original à exploração do tema na literatura do que aquele sugerido no comentário). Ascendentes, revoluções, cúspides, trânsitos, conjunções, sextis, trígonos e regentes são conceitos usados a todo momento pela astróloga para justificar tudo o que acontece no dia-a-dia.

Embora esteja sempre esbarrando em situações nada heterodoxas, Helena é o ser que se pretende místico e tenta encarar a vida de uma forma deliciosamente “alternativa”:

“A noite chegou e ela continuava na mesma posição, olhos vendados e braços cruzados sobre o peito. Eu disse baixinho, perto do seu ouvido, que estava com fome. Ela respondeu, também baixinho, que eu fosse comer e a deixasse quieta. Mamãe sofre de enxaqueca. Vive tomando chá de boldo e capim-limão, mas pouco tem adiantado porque está com estresse oxidativo. Tudo isso por causa do caos iminente, só não vê quem não quer.”

O trecho acima, copiado da primeira página do romance, revela um segundo aspecto peculiar: a narradora, sem idade mínima para interpretar criticamente os exotismos que ouve da mãe, quase sempre só faz repeti-los. De resto, a visão que Leninha tem dos familiares e de outras pessoas de seu círculo está firmemente associada às convicções de Helena, óbvio reflexo da dimensão na qual Livia trata agora a já referida relação mãe-filha. Às vezes, como todas as crianças, Leninha se surpreende com o que escuta; são esses os momentos, bem explicitados na obra, nos quais se pode observar uma nova personalidade surgindo e ganhando luz própria.

E aqui se fixa a terceira — e mais importante — característica de A palavra...: Livia não se contenta em narrar sob a ótica infantil, recurso não raro utilizado na literatura adulta e com o qual a autora lida muito bem. Ela agora leva em conta a transição da infância para a adolescência e a ebulição constante que isso produz na cabeça do narrador. O princípio e o fim desse longo e complexo processo são pontos relativamente seguros a partir dos quais se pode estruturar uma história de forma a torná-la convincente; o meandro, contudo, é o limbo frágil e sempre escorregadio por onde transitam as contradições típicas da puberdade, o que exige uma perícia adicional do escritor quando opta por um narrador pré-adolescente. Algumas atitudes de Leninha, por exemplo, seriam incompreensíveis do ponto de vista do adulto caso não tivéssemos todos vivido a mesma etapa em nossas próprias vidas. Livia aposta alto nesse conhecimento prévio do leitor e deixa no subtexto as explicações. O lado cômico é que a astróloga parece ignorar a realidade, atribuindo à influência dos astros o comportamento algo ciclotímico da filha quando esta começa a demonstrar interesse pelo sexo:

“— Ainda não te falei, Leninha, mas você está com um trânsito difícil, é bom saber para tomar cuidado com o ciclo de Urano. Você sabe como ele é, um susto, um sacolejão. Isso quer dizer que coisas inesperadas podem acontecer: você pode levar um escorregão, cair de bicicleta, encontrar um elefante na rua, rodopiar no vento...
— Está maluca, mãe?
— Está vendo? Essa maneira de falar é mais uma prova do trânsito uraniano.
Às vezes mamãe é tão chata, mas tão chata...”

Mantendo os ingredientes todos que já puderam ser apreciados em obras anteriores enquanto segue aguçando a competência narrativa, Livia Garcia-Roza apresenta com A palavra que veio do Sul seu mais bem acabado trabalho. Inato ou adquirido, o talento de ótima contadora de histórias se aperfeiçoa no decorrer do tempo, mais uma prova inequívoca de que o crescimento na literatura só vem com suor. E com a sabedoria da constante busca.

Luiz Paulo Faccioli
Publicado em Rascunho, edição de fevereiro/2005

 

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